AULA DE CINEMA BRASILEIRO

AULA DE CINEMA BRASILEIRO
Atriz de O Bandido da Luz Vermelha está em Goiânia

O filme O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, é tido como um dos principais filmes brasileiros. Exibido e elogiado em várias partes do mundo, conta a história de um marginal que desafia a polícia cometendo crimes requintados e que é, em seguida, delatado por uma mulher que provoca seu suicídio.
Essa mulher é Janete Jane, famosa na Boca do Lixo, vivida pela atriz Helena Ignez, musa e principal nome do cinema marginal quando o assunto é interpretação.
Helena Ignez está em Goiânia para uma conversa sobre cinema brasileiro e sobre sua história.
Hoje, a partir de 20h30, no cinema do Goiânia Ouro, momento em que será exibido O Bandido da Luz Vermelha, a atriz falará um pouco sobre o ciclo marginal, suas idéias e intenções, além de exibir seu filme A miss e o dinossauro, que retrata um período em que Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, outro ícone marginal, estiveram à frente da produtora Belair.
A conversa com Helena Ignez faz parte da programação da Mostra de Cinema Marginal organizada pela Associação Brasileira de Documentaristas - Seção Goiás (ABD-GO), em parceria com Centro Cultural Cara Vídeo, Sebrae e Secult.

Mais informações: www.mostradecinemamarginal.blogspot.com

ANDREA TONACCI E HELENA IGNEZ EM GOIÂNIA

O diretor Andrea Tonacci e a atriz Helena Ignez estarão em Goiânia, a partir desta terça-feira, para participar da Mostra de Cinema Marginal, no cinema do Goiânia Ouro.

A mostra, que acontece desde o sábado passado, traça um painel do que foi o cinema marginal através da exibição de filmes de dois de seus principais representantes, A. Tonacci e Rogério Sganzerla. A mostra é uma oportunidade ímpar de entrar em contato com obras inéditas em Goiânia.

Nesta terça-feira, será exibido, às 20h30min, um dos filmes mais marcantes do ciclo marginal, Bang Bang, de A. Tonacci, além de dois curtas de mesmo diretor e de um documentário de Sganzerla sobre um realizador emblemático, Orson Welles, e a vinda deste ao Brasil no filme "Tudo é Brasil".

Helena Ignez é considerada a musa do cinema marginal e se fez presente nos principais filmes do período, além de trabalhar com os diretores como Glauber Rocha, Júlio Bressane, Roberto Farias, Roberto Pires, Joaquim Pedro de Andrade, além de Sganzerla.

Em "A mulher de todos", transformou sua interpretação de Angêla Carne Seca em um momento memorável de afirmação feminina e deboche com o masculino. Sua personagem Janete Jane foi a responsável pelo fim do "O bandido da luz vermelha" e hoje, como diretora, acaba de ser premiada no Recine - Festival Internacional de Cinema de Arquivo - com o prêmio de melhor direção em A miss e o dinossauro.

Matéria publicada no jornal O popular, deste sábado

Mostra de Cinema Marginal

DOIS ICONOCLASTAS E UMA MUSA

A Associação Brasileira de Documentaristas – Seção Goiás (ABD-GO) mais uma vez inova ao trazer um dos mais importantes movimentos do cinema brasileiro à Goiânia. Em parceria com a Cara Vídeo, Sebrae-Goiás e a Secretaria Municipal da Cultura, realizam de 24 de setembro a 04 de outubro a mostra “Cinema Marginal: dois iconoclastas e uma musa”, no Cine Goiânia Ouro, com estréias às 20 horas e reapresentações às 12h30 e às 15 horas, como parte das atividades paralelas do 3º Festival de Cinema Brasileiro de Goiânia.

Cinema Marginal é um termo utilizado para definir um período que compreende o fim da década de 60 até o início da década de 80 e é marcado por realizações extremamente autorais e contestadoras do regime sócio-político da época.

A “Mostra de Cinema Marginal: dois iconoclastas e uma musa” irá apresentar a filmografia dos principais realizadores que representam esse período e homenagear a principal atriz do movimento: os diretores Rogério Sganzerla e Andrea Tonacci e a intérprete Helena Ignez. Estarão presentes na mostra Tonacci e Ignez para darem palestra sobre suas histórias de vida dedicada ao cinema brasileiro.

Será publicado um catálogo com a história do cinema marginal, entrevistas com os palestrantes e documentário sobre o evento.

História

O cinema marginal surgiu no Bairro de Santa Ifigênia, centro de São Paulo, na chamada Boca do Lixo, local que foi assim chamado pela crônica policial dos anos 20, devido à promiscuidade existente nas proximidades da Estação da Luz e Júlio Prestes.

As distribuidoras cinematográficas que se estabeleceram justamente em duas ruas próximas – Vitória e Triunfo – para facilitar o envio de filmes para o território nacional. Em decorrência dos incentivos do instituto nacional do cinema (INC), a Boca do Lixo se tornou centro de produção a partir de 1967 com sede nessa mesma região. Surgia, assim, o ambiente do cinema marginal

O cinema marginal recebeu várias denominações, entre as quais udigrudi (avacalhação do underground americano inventado por Glauber Rocha), cinema marginalizado, cinema de poesia, cinema de invenção, experimental, alternativo. Mas, como afirma o crítico e pesquisador Jean-Claude Bernadet, “essas expressões não pegaram e Cinema Marginal tinha um trunfo poderoso: o título do filme de Ozualdo Candeias, A Margem, o primeiro a ser incluído no movimento”.

O filme de Candeias iria inspirar a maioria dos realizadores que surgiram depois, como Andrea Tonacci e Rogério Sganzerla e suas principais obras: Bang-Bang O Bandido da Luz Vermelha, respectivamente.

Júlio Bressane, Elizeu Visconti e Neville d´Almeida, no Rio de Janeiro. Em Belo Horizonte, Sylvio Lanna, com Sagrada Família. Em Salvador, André Luis de Oliveira, com Meteorango Kig. São nomes que compõem a história do movimento que tem como característica o deboche e a chamada “curtição”.

Vera Haddad, em O cinema marginal e suas fronteiras, afirma que “são filmes produzidos por cineastas que, através do experimental, encontraram um caminho eficiente de realizá-los e, despreocupados com as tradicionais e bem-comportadas fórmulas narrativas e estéticas, conseguiram com poucos recursos extravasar seus anseios”.

Confira a sinopse dos filmes de Rogério Sganzerla

Confira a sinopse dos filmes de Andrea Tonacci

Entrevista com Helena Ignez

Entrevista com Helena Ignez


Helena, capa de O Cruzeiro em 1969, à época de a indicação ao
prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília


Queria primeiro que você falasse um pouquinho das coisas que você vem fazendo. Você é atriz do novo filme do Rogério [Sganzerla, também marido de Helena], Sob o Signo do Caos...

Sou. O Sob o Signo do Caos eu fiz, já foi há um tempinho a filmagem, mas ele está terminando agora. E é lindo. Adorei. Eu fiz a parte de dublagem também. É interessantíssimo, porque é um filme muito da palavra. Além disso fiz o São Jerônimo, do Júlio Bressane, e o Maria Moura, com a Leilane Fernandes, no ano passado, e vamos ver o que vai acontecer. Foi uma participação interessante com o Jorge Dória e com a Djin Sganzerla, minha filha.

Você também faz bastante teatro, fez várias peças...

É. Fiz Savannah Bay... Antes fiz Cabaret Rimbaud, não aqui no Rio, mas em São Paulo, em Salvador, onde a peça surgiu, e também em Barcelona, onde fomos convidados para participar num festival de arte brasileira. Foi uma experiência super interessante. E o ano passado, além de fazer Savannah Bay em São Paulo, onde tivemos uma crítica maravilhosa, páginas inteiras de cadernos culturais, cotação máxima do Nélson de Sá, da Folha de São Paulo. Depois disso eu passei a ensaiar Antiga, do Dionísio Neto, que é um autor jovem com uma receptividade enorme da crítica paulista desde o primeiro trabalho dele, Perpétua. Ele é jovem, 29 anos, também é ator. Foi um papel excelente, com o José Rubens Chachá e também com a Djin.

Uma coisa curiosa ao longo da sua carreira é que ela tem um perfil experimental, de você sempre estar trabalhando com o pessoal da vanguarda. Como é isso, você acredita que os diretores que têm uma maior afeição ao experimental te chamam?

É verdade.... É uma coisa que deve ter uma sincronicidade. Porque naturalmente eu já surgi numa vanguarda. Surgi no teatro baiano no momento de extrema vanguarda, de rompimento total com a parte mais provinciana do teatro brasileiro, com um grupo fantástico, dos meus mestres Martim Gonçalves, Gianni Rato e também alguns americanos, e pessoas importante dentro da história do teatro americano, alguns diretores mesmo da Broadway. Então foi muito interessante essa mistura, porque isso representava a grande vanguarda na época. E por aí eu fui no cinema logo com quem? Logo com quem, com o Glauber.

Em O Pátio.

Sim, n'O Pátio, que foi o meu primeiro filme. E por aí vai. Também eu acho que a minha posição pessoal, de uma certa forma, é experimental e de vanguarda, com o rompimento de comportamentos tradicionais, que no decorrer da minha vida se faz. E no caso do Dionísio foi adorável, porque ele veio assistir a Savannah Bay aqui na Tijuca (no Sesc Tijuca, onde Contracampo foi conferir e encontrar-se com Rogério Sganzerla), e ele já tinha visto um programa da Marília Gabriela em que eu dava uma entrevista junto com o Rogério, e tinha achado o tipo muito interessante para uma atriz que ele procurava, que era a protagonista que ele chama de uma "diva sertaneja", que é uma mulher que é casada com um candidato a presidente da república e depois se auto-exila, fica vinte anos sem sair de casa. Uma figura. Ele já tinha procurado entre várias atrizes. Viu o programa, achou interessante, soube que eu estava no Rio, veio e disse: "Olha, eu tenho uma coisa bem parecida com essa diva - na verdade, não era parecida, mas em comum tinha o estado dessa mulher que em Savannah Bay era uma grande atriz de teatro do passado e a outra era essa mulher que tinha o comportamento de uma diva, porque ela estava fechada dentro de uma casa, era uma outra história, outro contexto. Foi muito bom, eu adorei e possivelmente vamos fazer um outro trabalho juntos, apesar de Antiga continuar: foi convidada para um festival na Dinamarca e também estamos inscritos no Festival Internacional do Rio, e contamos com a inteligência que já se faz expressa da RioArte.

Helena, você tendo feito recentemente essa peças e os filmes do Bressane e do Sganzerla, e depois de toda aquela fase dos anos 70, eu queria saber o que você vê de amadurecimento, quais são os seus interesses, os desafios que você se coloca?

O que eu vejo é um momento de consciência, existe uma conscientização maior desse trabalho artístico em geral. Tanto dos jovens, no caso do Dionísio ou da minha própria filha Djin, que é uma estudiosa de teatro, até nós, mais antigos. E cada um procurando... Já que estamos falando de nós mesmos, eu acho que ficaram claros caminhos individuais, as diferenças no percurso de cada um. Essas pessoas com quem eu trabalho, e na verdade eu sou um duplo delas, elas têm uma consciência profunda de seu próprio trabalho, então a arte é uma forma de viver para essas pessoas, e para mim também. E essas ambições laterais, colaterais, como a superexposição na mídia e uma divulgação completamente massiva do trabalho já não é mais o objetivo da gente. E também não é o objetivo dessas pessoas, são pessoas que trabalham mais na qualidade. A diferença é pela qualidade do trabalho, pelo empenho em fazer bem feito o seu trabalho. E uma procura também de desmanchar essa linguagem tão tradicional, tão sabonete de cinema, principalmente, porque o teatro é mais livre, é mais barato, se experimenta mais. Ontem eu fui assistir o filme do Júlio [Bressane], o Dias de Nietzsche em Turim, e eu acho que antes de tudo é uma coisa de grande valor fazer cinema com uma outra cara, fazer um filme com uma outra cara. As caras são várias, mas são individuais, não estão procurando diretamente um mito, um espelho na mídia pra seguir. Apesar de eu achar que Godard ainda é o grande mestre, e que quem quer fazer bom cinema tem que ser inspirado nele, de uma certa forma.

E o percurso do próprio Godard é bastante diferente da agitação que era nos anos 60. Ele também está mais consciente, bastante introspectivo.

É, mas é absolutamente revolucionário, pessoal, anárquico, inteligente, anti-americanista (risos), com todas as suas características. E virou meio um sábio, né? Eu acho que o Godard é um sábio do cinema. Vocês viram o Éloge de l'Amour.

Sim, vimos.

É uma coisa maravilhosa, você sai maravilhado do cinema. Um amigo meu falou que saiu do filme como se tivesse saído de Cantando na Chuva, de tanta leveza. E é o oposto, né? Mas dá aquela extrema felicidade. Muito legal.

Falando dessa relação entre cinema e teatro de que você estava falando, como é que você faz a preparação para as suas personagens? Você vê uma diferença fundamental no teatro e no cinema ou é de papel para papel?

De papel para papel, sim. A diferença existe, claro, ela é óbvia. Se você vai representar um pedaço do rosto, um perfil, do que representar com o corpo inteiro, com uma mão. O cinema escolhe qual é a sua parte prioritária para expressar aquele determinado momento, podem ser as costas... Godard filma muito de costas, quase ninguém filma de costas. E eu sempre adorei essa coisa, em Savannah Bay eu começo de costas. Eu fico um bom tempo de costas, eu falo, e as pessoas se perguntam "O que é? O que ela quer?" E a receptividade do público era maravilhosa. Antes de ser feito é que se questionava se aquilo ia funcionar ou não. Mas o público não está tão viciado. Principalmente o público de teatro que vai ver uma peça especial está mais aberto.

Vendo essa mostra do cinema marginal, a gente percebia que várias vezes situações que davam uma grande liberdade para os atores, como os longos planos-seqüência do Sem Essa Aranha ou de Os Monstros de Babaloo. Como eram esses ritos de improvisação?

Era sim, era uma grande liberdade do ator. A atriz, no caso, que era eu, tinha muita participação cênica, como os outros atores que trabalhavam junto. Era uma delícia, uma grande liberdade e o ator existia, como o roteirista, como o fotógrafo... Era uma peça essencial. Claro que é essencial. mas se ouve falar - e é verdade - que o ator é um objeto em cena. Ali eu criava, nos seus movimentos, nas suas palavras. Mas esse já é um outro cinema. Mas voltando ao que você me perguntava, eu acho que é de personagem para personagem a melhor maneira de trabalhar. Eu agora estou querendo trabalhar com economia, com aquilo que eu trabalhei em O Padre e a Moça. Na direção de Antiga, foi muito pedido isso pra mim. Daquele personagem que é importante cada gesto, de como ele pega (faz um gesto de pegar), o movimento tem que ser simples mas estudado...

Um trabalho de contenção de gestos...

De contenção de gestos, isso. Simplicidade e exatidão.

Você uma vez disse que o Joaquim Pedro [de Andrade] pediu para você atuar em O Padre e a Moça sem os braços.

É, sem os braços, não movimentar... Deixar a figura mais neutra possível, contida. Em O Padre e a Moça, a personagem se encontra mesmo numa camisa de força, até que rompe. Rompe e é queimada. Então só no amor que ela consegue cortar essa prisão. O "sem braços" ali fazia parte de uma composição mais monolítica. Nesse sentido de contenção eu também trabalhei na última peça do Dionísio. Apesar de correr, andar, me movimentar e tal, mas dentro de uma simplicidade. Só satisfazia quando limpava, limpava, limpava, fica só aquela coisinha (vai baixando a voz para dar a dmiensão de leveza). Fluía muito tranqüilo, dentro de vários estados emocionais. Sem monotonia nenhuma, porque a vida não pode ser monótona, e a arte ainda muito menos. Apesar de ser minimalista, não pode ter monotonia.

Uma coisa que impressionou a maior parte das pessoas presentes na mostra - falando aqui dos filmes do Rogério que você fez parte - foi a incrível espontaneidade dos atores, e a coisa que se ficava sempre discutindo era o que era definido antes da filmagem, se o Rogério dava apenas diretrizes, se ele te dava toda liberdade ou se todos os movimentos, tanto no espaço quanto na fala, já eram todos calculados de antemão...

Isso é interessante. Sem Essa Aranha foi o filme mais coreografado que eu fiz. Era uma liberdade dentro das linhas que o Rogério ensaiava.

O filme era todo marcado?

Todo marcado.

Quando se fala das coreografias no cinema brasileiro, todo mundo fala de Terra em Transe, de Os Deuses e os Mortos, mas nesse filme tem pelo menos um plano-seqüência que eu acho que é antológico, que é aquele da boate, duma gafieira, que termina com você e com a Maria Gladys debruçadas na janela de frente para uma janela que dava para Copacabana.

Sei, a do bolero... Era uma boate que tinha em Copacabana, clássica...

Tem umas coisas impressionantes no filme, de quando a câmera segue o Luiz Gonzaga saindo da casa, e você fica falando "O sistema solar é uma merda".

Aquele pátio, né? Foi um filme muito trabalhado. Um dos mais trabalhados nesse sentido.

Na verdade houve uma certa ruptura entre O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos para os filmes da Belair, e inclusive em relação ao trabalho dos atores dá pra perceber isso, os dois primeiros filmes são muito montados, muito pensados, né?

Sim, Mulher de Todos sim. Mas também Sem Essa Aranha, que é muito pensado, muito trabalhado. Não teve esse nível de improvisação não. Porque ele queria fazer um filme com oitro planos-seqüências. Então era um filme realmente pra levar a alguma coisa. Copacabana Mon Amour, sim, foi mais solto. O filme tem planos absolutamente inusitados, como aquele do Othoniel Serra fazendo o fantasma de Copacabana. Absolutamente maravilhoso. Os atores rendem muito. Por isso todo mundo quer trabalhar com o Rogério. E depois que trabalha todo mundo quer voltar a trabalhar.

Voltando ao período que vai de 1968 até 1970 você fez um número incrível de filmes, você deve ter feito uns 10, 12 filmes.

Fiz muito, até 1972. Em 72 houve uma outra guinada existencial na minha vida, tomei outro rumo. Daí fui pra Europa, África e tal. Mas de uma forma, sempre muito ligada ao cinema.

Você chegou a filmar na África, não?

Na África, em Nova York, Estados Unidos, na Inglaterra.

Qual o nome do filme da África?

Não sei, acho que não tem nome, é em super-8.

E vocês ainda têm registro?

Sim, o Rogério tem ainda. E mesmo no tempo em que eu fiquei mais afastada ainda, abracei uma verdadeira vida de monge, morava em templo, viajei muito, fui a templos no mundo todo, mesmo assim eu trabalhei com teatro. Dava aulas, dirigia, fazia peças... tanto fora do Brasil como aqui.

Nesse circuito você esteve em que países?

Nos Estados Unidos inteiros, viajei de costa a costa. E fui à Índia também. Voltei a Londres também. Quer dizer, houve um afastamento real do dia-a-dia: não lia jornal, não me ocupada com o que não estava na minha alçada. Era outro trabalho. Me dedicava inteiramente àquilo. Mesmo nisso existia o teatro e o cinema.

E você acha que esse período de afastamento mudou de alguma forma a sua maneira de atuar, de encarar a arte?

Na maneira de atuar sim. Depurou. Estava conversando com um grande amigo meu, um antigo amigo, uma amizade que eu retomei agora, que é o Fauzi Arap. E o Fauzi realmente foi o maior ator que eu já vi em toda a minha vida. E eu me pergunto. Vi muito teatro. Trabalhei com vários atores extraordinários. Mas como o Fauzi, só o Fauzi. E ele desistiu de ser ator, acho uma loucura, inacreditável. E aí eu falei, "Ah, Fauzi, acho que nunca vou deixar de atuar, porque pra mim é uma espécie de religião essa coisa de ser intérprete, né?" E eu falei pra ele que eu fiquei melhor atriz. E ele gargalhava. Isso apesar de ser fã daquela atriz que fez A Mulher de Todos, eu realmente acho que melhorei. Acho que a gente depura esse contato com uma atmosfera menos pesada, material, com tanto espírito de competição. Acho que a competição acaba com você, destrói. Quando você vê um ator ou diretor caindo é porque ele entrou nessa luta de competir, de ser o melhor, o que eu acho a coisa mais grosseira da vida material. Eu estou num lado bem mais sutil.

De uma certa maneira, houve um grande desprendimento, né? Como a gente falou, você está sempre na vanguarda. Você era uma atriz muito conhecida, tinha feito Assalto ao Trem Pagador, e foi fazer os filmes do Rogério e do Júlio, os chamados "marginais"...

E mais que isso, porque nessa época eu era produtora. Meu dinheirinho também entrou nisso.

A Mulher de Todos e O Bandido da Luz Vermelha funcionaram muito bem no aspecto de público.

Funcionaram muito bem, mas depois veio a Belair. A Belair não poderia ter entrado no circuito exibidor porque era uma época horrorosa, e os militares estavam preparando o que tem de pior, que é a pornochanchada. E a Belair ficou por fora, os realizadores também tinham umas opiniões contrárias à ditadura... Senão eles poderiam também ter emplacado.

Os filmes deles têm claramente o interesse em dialogar com o popular: o Bressane trabalhou com o Grande Otelo, O Rogério chamou o Zé Bonitinho, o Luiz Gonzaga, o Moreira da Silva, trabalhou música com o GIlberto Gil...

Isso... Também o Dom Um [Romão]... O Rogério quer fazer com o Gilberto Gil um outro filme... É isso, o último filme de Grande Otelo foi com o Rogério, o Nem Tudo É Verdade.

Você é uma das atrizes mais soltas, mais livres de movimento. Até o Stanislavsky fala isso, que uma das primeiras coisas para o ator desenvolver um processo de criatividade no trabalho ele deve ter um corpo solto e mais livre possível. Agora, eu acho que – falo mais pelo Savannah Bay, que foi onde eu pude ver você em ação por mais tempo nos últimos anos – você atua num certo sentido da contenção e de ter poucos gestos mas todos os gestos muito bem pensados e muito significativos. Vendo A Mulher de Todos, Sem Essa Aranha ou Copacabana Mon Amour o que mais se sente com força é uma certa violência: o grito, os gestos que parecem completamente irrefletidos.

Isso... Mas em Savannah existia esse vulcão interior, que surgia de vez em quando, mas o personagem é fechado, recalca aquilo através de um certo humor. A própria Marguerite Duras fala que as emoções são imorais, às vezes... Mas eu acho que é a mesma pessoa. Se eu não tivesse ido ao extremo de A Mulher de Todos eu não chegaria à contenção de Savannah Bay. Apesar de Savannah Bay ter sido no começo ainda mais contido. Foi o Rogério, inclusive, que abriu, que esgarçou o personagem. Ela era completamente monolítica. Cada riso, cada sorriso, fosse o que fosse, estava tudo sob a égide da contenção. Savannah Bay está mais próxima de O Padre e a Moça. E A Mulher de Todos era o contrário, era a anarquia do corpo, e também Sob o Signo do Caos, que é mais nessa linha de A Mulher de Todos.

Você atua com quem nesse filme?

Tem várias pessoas. Tem a Giovanna Gold, tem a Camila Pitanga, tem o Guará, o Otávio Terceiro, que já trabalhou com o Rogério antes. E é isso, tem esse prazer de brincar com o corpo e com o movimento.

Você filma há trinta e cinco anos com o Rogério. Você vê uma mudança, uma diferença na maneira como você trabalha com ele desde O Bandido da Luz Vermelha a Sob o Signo do Caos?

Existe uma mudança sim. E existe também uma coisa inacabada nessa mudança, algo que não está acabado. Por exemplo, é claro que eu passei de uma jovem, de uma menina para uma senhora de sessenta anos. Agora, corporalmente, na questão dos movimentos, houve um apuro com o tempo Apesar da minha formação ser uma formação de dança – então já se esperava que eu fosse por aí –, eu desenvolvi com o tai-chi-chuan, com lutas marciais internas da tradição chinesa. Eu até aprimorei e mantive todos os movimentos técnicos da juventude. Então eu fiquei, de uma certa forma, uma atriz bem original. Já era, talvez, e continuei sendo meio original. Porque eu sempre gosto de, no meio de uma atuação clássica, sair para um lado mais de experimentação. Então isso com o Rogério, sempre foi assim. Mas agora, na maturidade, eu não vejo que está completo o meu ciclo com o Rogério. Em Sob o Signo do Caos, acho que as pessoas que gopstam do meu trabalho vão continuar gostando, mas ainda é uma transição. Eu quero pegar agora uns papéis de velha, como atriz já em outro estado da vaidade, da contenção. Eu acho inacabado por isso, porque tem ainda essa fase pela frente. O Rogério, como ele também se aprimorou muito na pesquisa dele, na sinceridade dos filmes, de fazer exatamente o que quer, ele ainda nesse sentido está jovem, né? Tem muita coisa ainda que ele pode fazer, e esse desejo está forte e se restaurando. Porque também houve um aspecto de decepção com a arte, com a dificuldade de fazer arte, acho que tanto da minha parte como da dele. E agora a coisa parece que ficou melhor. Eu já estou assumindo a minha maturidade, estou nela e está sendo ótimo, e ele está cheio de vigor para fazer um cinema tão interessante como sempre fez.

Você falou da sua formação em dança... Queria saber um pouco mais de como você começou, como você ingressou no teatro e depois no cinema. Qual o tipo de formação que você teve?

Eu fiz teatro e dança. Dança contemporânea, dança moderna, mas que sempre inclui uma base de clássico. Isso na Bahia, com grandes professoras, grandes figuras da dança moderna. E também fiz Afro, até mais ou menos 1972. Em 1972 eu conheci o tai-chi-chuan, e foi uma coisa de uma dedicação, que não pára, vai até hoje, o tempo passou, já são vinte anos e eu ainda me dedico, e me dedico, tendo aulas com fulano, cicrano, faço seminários com aquele mestre em não-sei-onde, corro atrás. Faço algumas armas também, faço espada, faço leque...


E no teatro? Você fez teatro com o Martim, com o Gianni Ratto, e que idéias circulavam? Que tipo de preparação se fazia lá?

A formação foi clássica, stanislavskiana e Actor's Studio, o Martim tinha contatos com o Arthur Miller, tocava a campainha da casa dele e vinha a Marilyn abrir, era uma pessoa íntima de grandes personalidades da época, um pernambucano que sofreu muito porque era viado, e todo mundo, até os comunistas, tinham um preconceito terrível.

Isso por volta dos anos 50?

Quase anos 60. Ele tinha essa fama mas não dava bandeira de jeito algum, comportava-se como uma freira, mas mesmo assim o pessoal perseguia ele, nos 4, 5 anos de escola. E ele era assim, tinha uma formação stanislavskiana, via Actor's Studio, e com grandes mestres de cenografia, de dicção. Brutus Pedreira, que trabalhou em Limite, nos ensinou música... Kollreuter... A formação era a melhor possível, a mais ampla. Teatro deve ser isso, uma formação ampla. E com a Lina Bo Bardi, diretora do Teatro Castro Alves, onde eu trabalhie várias vezes. Ela também era professora da escola... Uma formação... nossa! O aluno já saía dali preparado para a vida, abria a cabeça de toda a garotada baiana da época.

Em que momento apareceu o não-realismo? Porque A Mulher de Todos, por exemplo, é muito mais pautado no ator como ator do que como personagem... O filme já começa com você dando todos aqueles chutes no Stênio que já é uma quebra do modelo clássico do ator...

Mas n'O Bandido já tinha o não-realismo. Aliás, o roteiro d'O Bandido foi escrito antes da história do bandido da luz vermelha. Aí apareceu nos jornais, as coisas se encaixavam e isso foi usado. Mas nem podia ficar muito claro senão os advogados do cara iam em cima. Mas será que eu fiz algum filme realista? O Padre e a Moça?

A Grande Feira...

É, A Grande Feira, mas O Pátio não, São Jerônimo não... Teve o Assalto ao Trem Pagador...

Você tem vontade de pgar um papel realista?

Tenho, eu gosto.

O Maria Moura vai por esse lado?

É uma comédia, eu trabalho com o Jorge Dória, ele arrasou, fizemos uma seqüência maravilhosa, eu torço para que o filme saia. Eu também penso agora em fazer um filme.

Dirigir?

É, agora é tão difícil... Que bom se não precisasse de tanto dinheiro, se tivesse um instituto.

E em que pé está?

Bom, as idéias vêm vindo, vêm se encaixando uma na outra, às vezes desmancham, porque tem muito a ver com uma experiência pessoal, eu gosto muito de um livro de uns baianos sobre a juventude minha e de Glauber. Tem um personagem chamado Leninha, e o livro conta coisas até intimos, emocionais minhas, num trabalho de pesquisa... Tem coisas que nem eu sei como foram parar lá. Esse casal de irmãos dramatizou a época, 57, 58, que é exatamente o período em que eu estive com o Glauber. Então eu acho que daí pode dar um docudrama interessante tendo na cidade de Salvador um elemento importantíssimo. Pega fragmentos dessa história e incluir nessa cidade de Salvador que começou a dar virada, porque ainda era muito primitiva. Isso termina em 1970, por aí. Alguma coisa ligada à Bahia. E eu tenho comigo um roteiro, também, que foi feito com um rapaz de teatro, muito legal, saiu uma coisa bem interessantezinha. De um grupo de teatro no Vidigal.

O Nós do Morro?

Não, simplesmente um grupo de pessoas. Uma menina, surgiu a história de uma menina, todo mundo gostava e tal, eu mandei pra RioFilme naquela época e não foi aprovado. Deu um desânimo... Quer dizer, a gente sabia que podia acontecer, mas era ótimo o trabalho deles...

A gente falou um bocado do teu trabalho com o Sganzerla, mas e o teu trabalho com o Bressane, da Belair até o São Jerônimo? O que ele te pede, qual a margem de liberdade que ele te dá?

No São Jerônimo ele falou, "Olha, eu quero a imagem mais contida possível, as mulheres são neutras". E a voz. Nos outros filmes, a contribuição era grande.

Não era tão marcado?

Era também. Mas não era coreografado, como no Sem Essa Aranha, porque o Júlio é mais fixo, mais contemplativo. E ótimo de trabalhar. É muito legal.

Qual o filme que você teve mais prazer fazendo e qual é o filme que você vendo acha que tem mais de Helena Ignez na tela?

A Mulher de Todos tem bastante... É, acho que A Mulher de Todos.

Também foi o que te deu mais prazer fazendo?

Prazer eu tenho em todos, eu tive muito prazer em fazer Sob o Signo do Caos também. E adorei fazer também o filme do Júlio, porque não é fácil fazer o que ele pede, aquela voz integrada no corpo. Mas o prazer para mim é o mesmo.

Só mais um último comentário: eu acho incrível que, logo depois de vocês fazerem A Mulher de Todos, o filme do Rogério e o seu personagem mudaram o perfil de atuação de cinema no Brasil. Eu não sei se é uma influência da época ou do filme, acho que dos dois, mas um monte de atrizes caminhou no sentido dessa espontaneidade maior. Logo depois a Adriana Prieto vai fazer com o Roberto Santos Um Anjo Mau, onde ela também usa muito essa violência feminina, a Anecy Rocha no filme do Walter Lima Jr. [A Lira do Delírio], várias atrizes que seguem por esse caminho. Você é bastante pioneira. Eu não creio que haja um filme antes de A Mulher de Todos que apresente uma força tão grande na presença da mulher.

Foi muito forte ter feito A Mulher de Todos. Na época não foi mole não. Muito preconceito, muita coisa que acontecia. E a sensação não era muito cômoda porque eu ganhava muito prêmio, recebia prêmios nos festivais. Não era simpático. As minhas amigas estavam lá... Mesmo com O Padre e a Moça aconteceu isso. Você sabe, a Fernanda [Montenegro] fala isso, que ganhar prêmios não é cômodo. Nessa época eu queria romper mais. Eu queria botar pra quebrar a linguagem estabelecida, em todos os sentidos. E nisso, evidentemente, tinha também o impulso destrutivo, e você falou aí no meio o nome de duas pessoas que morreram ainda jovens, no começo da jornada, que também seguiram esse caminho, a Anecy e a Adriana. Eu acho que você tem que romper mas tem que manter uma chama de amor, senão fica só destruição e se volta contra você mesma. E eu espero, como a vida imita a arte e a arte imita a vida, que hoje fique o lado realmente engraçado, divertido, positivo. Naquela última sessão de A Mulher de Todos na mostra...

... As pessoas riram muito...

Riram muito, nunca vi rirem tanto (risos). É muito engraçado.

Porque o filme também é uma declaração de amor.

É. E ali eu também estava amando profundamente. Mas não era Rogério só. O amor dele foi se depurar com o tempo. O amor mesmo era o da arte, de passar pelas pessoas, de vontade de chegar a elas, é meio interpessoal. E também um momento extraordinário do sentido particular, porque afinal era o amor da minha vida que eu tinha encontrado. Eu vi agora a Malu [Mader] no Bellini e a Esfinge? Dentro do convencional, ela está tão feliz de estar fazendo que é adorável ver. Antes de tudo, ela tem uma tal alegria de ter chegado a estar fazendo o que ela queria. Isso passa. Não se torna mais um trabalho. Isso tinha em A Mulher de Todos muito forte. No caso da Anecy, em A Lira do Delírio, que é um dos filmes mais bonitos do cinema brasileiro, tinha quase uma premonição da morte. Eu não consigo nem ver esse filme direito.. .Tinha a fragmentação do personagem. Mas era diferente do meu filme com o Rogério. Mas é, eu acho que houve uma influência grande, em vários filmes, algumas inconfessadas, outras confessadas, até bem mais tarde.

Eu acho interessante também essa coisa da chanchada, que o Rogério retomou os atores, um certo fascínio por um tipo de personagem como Zé Bonitinho que está lá. Quer dizer, tinha esse interessa para compor o personagem.

Tinha. Os grandes mestres são os cômicos populares. Esses são maravilhosos. Agora eu estou rindo porque num determinado dia no ensaio de Antiga, que era muito sério, muito comportado do ponto de vista cultural, eu falei, "Mas isso aqui está parecendo A Praça É Nossa!" E as pessoas ficaram assim, "Logo com o que você foi dizer que nós estamos parecidos? A Praça É Nossa?" (risos) Porque era realmente quatro chanchadeiros ali naquele palco. E é ótimo, isso existe no ator brasileiro. Acho que a característica dele é pelo povo, né? Quer dizer, a gente não pode se desvincular do popular. Tem alguém mais pé no povo do americano do que o Sean Penn? É um típico neurótico americano. É um grande ator. Ele é completamente enraizado na sua cultura.


"Esta mulher é nossa", dizia O Cruzeiro.

Entrevista realizada por Daniel Caetano e Ruy Gardnier no dia 9 de abril de 2002.



Entrevista com Rogério Sganzerla

Sganzerla ataca de bandido

Não obstante a alta qualidade da seleção de Brasília, sabe-se que Rogério Sganzerla venceu bem o IV Festival do Cinema Brasileiro com seu Bandido da Luz Vermelha. Em suas declarações a nossos colegas no Jornal do Brasil, Rogério Sganzerla – nascido em Joaçaba, Santa Catarina, em 1946 – disse acreditar que seu filme contém, "principalmente, uma reformulação formal dentro do cinema brasileiro. Chegou a hora dos filmes sujos e poéticos, impuros e pretensiosos, das formas novas para novos conteúdos. De um cinema de linguagem que falasse da política ou de banditismo sem respeito estético, adotando inclusive – como Gustavo Dahl em O Bravo Guerreiro – uma liberdade obsena".

Um fenômeno de precocidade

Rogério Sganzerla apeoximou-se do cinema ainda garoto.

– Aos doze anos, escrevi meu primeiro roteiro; e era um roteiro de longa-metragem.

Como crítico e como cineasta, Sganzerla filia-se claramente às novas correntes que vêm revolucionando o cinema no mundo inteiro.

– Se faço cinema no Brasil, então faço Cinema Novo. É difícil defini-lo, sem dúvida. É uma igrejinha, mas também um movimento coletivo, talvez o mais importante da cultura brasileira nestes últimos vinte anos. Se existe algum lado negativo então é o caráter sub-literário e o despreparo de muitos diretores com pretensões estritamente intelectuais. O filme que sintetiza o Cinema Novo ainda é Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, embora reflita os entusiasmos, as indecisões e a ingenuidade da primeira fase. Barravento, do mesmo Glauber, é o melhor filme baiano. E Terra em Transe abre, com O Desafio, o novo momento do Cinema Novo. Não se pode defini-lo: aí está sua força. Os filmes têm que ser políticos, mas podem sê-lo de outras maneiras, não somente como Rocha e Saraceni. Não se pode nem tentar imitá-los. É preciso que a turminha de hoje, mais nova, abra os olhos e enverede por outras saídas. O cinema evolui em meses e mesmo assim está atrasado em relação às outras atividades artísticas.

Discordo de um cinema brasileiro estritamente crítico, realista (no sentido tradicional) e objetivo, embora respeite certas opiniões dos lukacsianos. Nossa realidade não admite cinismo nem constatação seca dos fatos. O distanciamento e as teorias brechtianas, aplicados ao cinema, são coisas do passado. Hoje, não se pode pensar em aplicá-los a nossos filmes. O cinema brasileiro é um processo naturalmente cruel: Godard e Rosi precisam ser destruídos urgentemente. É o novo Cinema Novo quem pede.

Por um cinema imoral

Nas declarações ao Jornal do Brasil como que completando o depoimento que me fez há tempos, Sganzerla acrescenta: "O novo cinema deverá ser imoral na forma, para ganhar coerência nas idéias, porque, diante desta realidade insuportável, somos antiestéticos para sermos éticos. Fiz O Bandido da Luz Vermelha porque todos os cineastas que admiro fizeram filmes policiais mas no meio do projeto percebi que não poderia parar, que tinha de incorporar outros estilos sem sair da poesia noturna do policial classe B, para procurar a verdade nos espaços externos do western, nos interiores pobres da chanchada, na estilização do musical".

Enquanto esperava sua vez de fazer cinema, Rogério Sganzerla fez crítica.

– Foi meu meio de dizer as coisas, de violentar o cinema durante quatro anos. Hoje, não consigo escrever mais de vinte linhas sobre um filme; antigamente, escrevia laudas e laudas. A crítica, agora, para mim serve como política de cinema; mais nada. Lamento que eu seja o único de minha geração a interessar-se pela crítica; todos os outros nem querem saber de jornalismo e crítica. A crítica brasileira continua ruim.

Por muitos vietnãs

Para Sganzerla, todos os jovens "estão um pouco viciados pela nouvelle vague e seus famosos macetes; aquilo que todo mundo chama de mise-en-scène".

– Ou seja: a montagem solta, o estilo documental, os planos-seqüências, as personagens politicamente indecisas, elegantes e amorais, a câmera na mão, etc. Ficam só nisso: o cinema pelo cinema. Godard. Godard é o primeiro e único capítulo dos novos, mas precisa ser situado e criticado.

Godard é um intelectual vítima da sociedade industrial francesa, que fala de outras realidades. Fico com Pasolini quando ele diz que "o cinema agora tem que ser bárbaro e barroco". Glauber Rocha, cineasta brasileiro, meu irmão, meu semelhante. O cinema brasileiro nasce com Humberto Mauro, vive com Nelson Pereira dos Santos, excita-se com Paulo César Saraceni, desespera-se com Glauber Rocha e morre com todos nós. Godard falou: "É preciso criar um, dois, três, quatro Vietnãs cinematográficos". O cinema brasileiro, mesmo o Cinema Novo, está se aburguesando; virou cinema novo-rico. Por outro lado, volta o outro cinema, isto é, o cinema gagá (de São Paulo, principalmente, de nossos clássicos expressionistas caipiras).

O cinema do risco

O novo cineasta não vê muitas perspectivas para os jovens que desejam fazer cinema no Brasil.

– Mas é preciso lutar. Estamos aí para isso mesmo. Em verdade, hoje existem dois cinemas: o novo rico e o cinema de guerrilha. Nesta última perspectiva é que se alinha a nova geração. Não sei bem quem é a nova geração, mas sei que está aí. Há muito interesse por parte de gente inexperiente ou quase, em trabalhar com celulóide, fazer filmes, mudar as atuais condições do Cinema Novo. Ele está um pouco desgastado.

E aí está O Bandido da Luz Vermelha, ganhador do grande prêmio de Brasília 68. "Se escolhi o bairro para falar do Brasil", disse ainda Sganzerla ao JB, "é porque esse bairro se chama Boca do Lixo. Não é símbolo, mas sintoma de uma realidade. Dentro de uma sinceridade total, tentei mentir e dizer a verdade, ser triste e violento, boçal e sensível, acadêmico e criador. Enfrentei uma parada diabólica: os maiores riscos para um estreante na longa-metragem com a simples certeza de que o cinema brasileiro é o cinema do risco, onde tudo é possível".

Alex Viany
(Tribuna da Imprensa, 5 de dezembro de 1968)








Entrevista com Andrea Tonacci


Você começou sua carreira fazendo o curta Olho por Olho e fotografando o filme do Rogério Sganzerla, Documentário, e o filme do Otoniel Serra, que passaram no Rio...

Passou no Festival JB, exatamente, passaram os três.

Você chegou a conviver com o pessoal da escola São Luís, né?

Eu cheguei a dar aula lá algumas vezes – até o padre me mandar embora.

É mesmo? Deu aula de cinema?

É, imagine, sem saber nada...

Quarenta anos depois, como você avalia esse primeiro momento?

Você está me perguntando como? O que eram esses três filmes, como eles surgiram?

Como é que eles surgem e como é que você olha eles hoje. Porque você deu alguns passos seguintes bastante diferentes.

O que eu posso te falar é o que eu... Primeiro que é isso: são quarenta anos, né? E se eu olhar para esse período da minha vida... Eu hoje, eu olho um pouco nostálgico, tem umas coisas afetivas assim que eu sinto... Mas olhando hoje para os filmes o que me parece é que, na verdade, eram coisas um pouco diferentes os três, apesar de ter trabalhado nos três, quer dizer... Falando assim: a atitude do Olho por Olho, da minha parte, eu acho que tinha uma revolta, uma raiva, uma impotência, uma sensação, em suma, de achar um caminho, uma solução, quer dizer, era uma coisa meio pessoal, de um sentimento assim... De ter que romper algo para poder chegar a alguma coisa. Já o filme do Rogério me parece um filme mais pensado racionalmente, digamos assim, com uma finalidade... O Rogério era uma pessoa com uma formação de cinema, naquele período, já bastante consolidada – já era um período em que ele estava procurando escrever nos jornais, ele escrevia em uns outros jornais na época, eu me lembro. Então é uma postura um pouco diferente, é uma pessoa um pouco mais consciente, vamos dizer assim, do que seria estar fazendo cinema. Para mim ainda é uma explosão pessoal, uma coisa meio intuitiva e pessoal. E para ele, me parece que ele já tinha um objetivo... O cinema já era uma coisa externa, ele tinha uma formação do cinema americano, uma coisa assim. O filme do Otoniel, eu acho que o Otoniel era mais poético, mais... A palavra não seria deslumbrado, mas mais fascinado, vamos dizer assim, pela literatura, pela revelação do que ele via, do que ele encontrava no mundo. Então são três pessoas bem diferentes nesse período. A proximidade da gente... Com o Rogério eu tinha uma proximidade muito grande, afinal a gente estudava na mesma escola, a gente se via todos os dias, ele morava em uma pensão na frente ali na Maria Antônia, almoçávamos ali na pensão, ele freqüentava a minha casa, eu ficava na pensão e é isso, uma relação de amigo, uma coisa muito próxima, de amigo. Do Otoniel eu já era um pouco mais longe, era mais uma pessoa, eu não me lembro exatamente, o Otoniel acho que era jornalista no Estado na época, acho até que foi uma pessoa que deve ter ajudado o Rogério lá, não sei direito, isso tem muito tempo. Quer dizer, no fundo, eu sinto essa diferença vendo hoje, na época, eu acho que não tinha a menor idéia dessa distinção. Eu estava dirigindo um e fazendo fotografia e câmera dos três. E nesse ponto eu era a mesma pessoa, apesar de estar olhando para situações diferentes. Mas a minha abordagem como pessoa, a minha maneira de estar fazendo, era a mesma expressão que, eventualmente, eu botei no meu filme. Mas a estrutura da cabeça dos outros era diferente, e o filme sempre resulta em outra coisa. O Rogério, com essa sua leitura e capacidade de olhar um pouco como os filmes eram estruturados e com conhecimento de montagem, ele, na verdade, montou os três. E se eles têm, vamos dizer assim, essa concisão narrativa que eu acho que os filmes têm, foi o Rogério que fez. E a montagem foi uma nova estruturação do filme. O olhar é uma coisa, a montagem é outra, né. Eu sinto esses filmes assim. Mas eles eram totalmente caseiros.

Agora eu fiquei curioso em relação à sua formação de cinema, porque você falou que o Rogério já era...

É, eu me lembro dele... Ele, por exemplo, era uma pessoa que assistia aos filmes, mas ele via muito analiticamente o cinema. Eu sempre... por exemplo, a minha formação como cinema: não estudei cinema, eu estudei engenharia e arquitetura. Mas desde moleque gostava muito de cinema, ia a cinema, fugia de casa para ir ao cinema, entrava em filme que não podia. E assim, não digo todo dia, mas me lembro que quando a Cinemateca era na Sete de Abril, lá em São Paulo, eu assistia integralmente às programações da Cinemateca, então assistia a cinema polonês, japonês, cinema alemão, cinema indiano. Mas era uma coisa meio de descoberta, de revelação, algo para o qual eu não tinha um distanciamento crítico, era um envolvimento emocional, eu me identificava, adorava o filme, saía... Então, era o que o filme me provocava pessoalmente como revelação, como descoberta que me ligava ao filme. E não a técnica ou a fotografia ou não sei o quê, tudo isso estava lá, mas... Mas estudei, fui aprender fotografia, estudei...

Mas era uma coisa de fruição mesmo...

Mas era uma coisa de vida mesmo. Aquilo que tivesse de vida era o que me dava desejo de fazer também, como se fosse um caminho de conhecimento mesmo, de descoberta. E nisso, falando agora, eu identifico que hoje continua sendo a mesma coisa.

Isso lembra Bang Bang.

É. E esse filme atual mesmo, o Serras da Desordem... Cada filme é de novo, é de novo, é do zero, eu não sei nada, entendeu. Cada história, toda vez, é um reencontrar – claro que no caminho do fazer você reencontra coisas que você conhece, mas confesso que, se eu encontro alguma coisa que eu conheço e vejo que me aproximo, eu fujo. Porque já conheço aquilo.

O interesse é descobrir.

É, ir atrás. E o fato de ter ido, de ter me dedicado a essa coisa um pouco dos índios e parar lá no mato é porque é um desconhecido, o outro, esse outro que, de fato, tem uma outra cabeça, uma outra formação, uma outra... Apesar de ser um homem igual a mim, a gente é a mesma máquina, vamos dizer assim. Essa possibilidade de encontrar algo que é uma revelação é o que me motiva, digamos.

Não falar do conhecido, falar do que você não conhece ainda.

É. Eventualmente falar do que eu não conheço, baseado no que eu conheço.

Aprender...

Aprendê-los.

É curioso que o Carlão Reichenbach, seu amigo, fala justamente outra coisa: que ele se recusa a filmar o que ele não conhece. O seu caminho seria então um olhar mais... Não vou dizer de antropólogo, mas uma coisa mais...

É, você falou uma coisa de antropologia: eu nunca olhei assim, porque minha formação não é antropologia, mas me lembro de uma crítica, uma análise que o Jean-Claude Bernardet fez do meu filme Jouez Encore, Payez Encore que é exatamente isso, ele fala da antropologia de nós mesmos. E isso me marcou porque eu acho que ele bateu em uma tecla certa nesse ponto: é uma descoberta da gente, não é do outro. O outro é um instrumento para o teu conhecimento, para o teu auto-conhecimento, digamos. Mas o teu auto-conhecimento, na verdade, é uma descoberta na vida, porque o teu auto-conhecimento é relativo à existência que você tem.

Mas a partir de olhar para outro.

Da parte de fora, não é uma... Senão, sei lá, senão você não vive.

Seu filme seguinte foi Blá-blá-blá...

O filme seguinte foi Blá-blá-blá... Foi filmado em 67 e ficou pronto, se não me engano, em 68.

Tem muito a ver com determinados filmes políticos da época, como o Terra em Transe...

É, você vê que tem o Paulo Gracindo.

E um filme do Bressane também, o Cara a Cara. Mas já tem essa coisa, novamente, de você não ter muita certeza do que está comunicando de um mundo com o outro.

A idéia do filme é essa. A idéia do filme não é fazer um discurso político conseqüente, é mostrar a inconseqüência da retórica do discurso político, que é igual em qualquer lugar. Tanto que o filme não é um discurso... Na soma, vamos dizer assim, por mais que a gente use frases de outras pessoas e você coloque em um texto como sendo a sua expressão, quer dizer, você fala a frase, você bota a sua emoção, você bota o teu conhecimento interior, a sua motivação; mas o Blá-blá-blá, ele é inteirinho costurado de frases conhecidas, que vão de Cristo a Buda, a Castelo Branco, a Hitler, a Henry Miller, a... Se você buscar internamente, ele é uma costura de textos, de conjuntos de coisas que foram, na minha cabeça, construindo um discurso que, na verdade, é totalmente contraditório, o tempo inteiro é...

E me parece que ele se perde. No final ele não tem mais como fugir do próprio discurso.

No fundo, a frase dele é um pouco o que nós estávamos falando atrás... Como é que ele termina? Eu me lembro da última frase do filme, é uma frase do "Primavera Negra" do Henry Miller, que fala assim: "Essa noite eu vou meditar sobre o homem que eu sou". Então repito a história dessa busca, de ir atrás – qualquer que seja o caminho, é uma tentativa de conhecimento. E o conhecimento do mundo se faz através do teu autoconhecimento porque, na verdade, o mundo é externo, mas o teu relacionamento do teu lado interior com o mundo externo é o que faz o conhecimento.

A violência é muito presente, né? Imediatamente pré AI-5.

O AI-5 é de 68?

É de 68... E aí começou o ciclo do pessoal do Cinema Marginal, começou a haver aquela produção, aquele surto de filmes...

Mas você sabe de uma coisa, eu fico pensando assim... Os momentos, nos períodos mais difíceis, mais instáveis, são os períodos onde, pelo menos naquele momento para a gente, é quando você tem mais vontade de dizer alguma coisa. Nos períodos em que está tudo bem, digamos, em que você está feliz, que não tem que batalhar nada, quer dizer, batalhar nada não existe, mas quando você está muito equilibrado, aí vira... Você precisa mexer a coisa para ter um pouco de turbulência, para poder existir de novo uma motivação. Então, no fundo, eu me provoco. Ir fazer um filme lá no Maranhão agora é uma provocação comigo, inclusive física, para ver se eu ainda tenho a resistência de encarar...

Serras da Desordem no Maranhão então foi uma provocação pessoal?

Essa é uma maneira de dizer, mas é algo que te diz assim: "Estou vivo, ainda tenho que aprender, ainda tenho força para andar, ir atrás, não importa onde é". A Gente sempre tem um pouco de auto-afirmação, buscando justificar a existência, ter um sentido pra estar fazendo as coisas. Eu acho que a gente interfere; eu não faço um filme para passar no cinema e dar dinheiro. No fundo, me interessa que esse filme interfira em alguma coisa, provoque alguma coisa, senão uma reflexão, um momento de dúvida, um momento de questionamento seja ele qual for. O que quer dizer isso? Basta esse espacinho na cabeça de alguém, que não seja uma certeza que algo, então, torna a viver. Quando você tem a certeza, pára, a coisa morre. A palavra não é morre, é pára, estaciona.

Tem uma frase do Artaud que diz que as idéias claras são idéias mortas.

Artaud era uma pessoa que eu adorava, também lia. Era uma presença que era presente nessa época.

No livro do Jairo [Ferreira, ndr], Cinema de Invenção, tem vários discursos assim. Tem um texto do Nelson Aguilar sobre Bang Bang e também tem um texto do Carlão sobre o filme do Mojica, O Ritual dos Sádicos, e os dois usam o Artaud como uma referência. Eu percebi que, na época, havia um certo interesse pela escrita dele.

Pela aventura da vida dele, né? Afinal, o livro é a expressão...

A própria escrita é...

A vida.

E também ser a expressão possível, que, ainda assim, não é ideal. Ele fez um texto em certo momento dizendo que toda escrita é uma porcaria...

É, porque também é um momento que pára, na hora em que você escreve uma palavra, se ela é definitiva, se ela significa simplesmente o que está escrito, a palavra acabou.

É como o que você falou do filme.

Agora, por que a poesia vale? Porque a poesia te joga brechas, te dá espaços, ela não te dá certezas, ela não te dá pedras, ela te dá o espaço entre as pedras, vamos dizer assim.

E o seu filme tem a ver com isso.

Acho que sim.

No Bang Bang isso fica especialmente claro, porque ele insinua que vai acontecer uma certa história, parece que tem um enigma para você decifrar na história, mas, na verdade, quando o cara pára para explicar a história, atiram uma torta nele.

Pois é, se chega a ter uma explicação, não me interessa; me interessa é continuar com o caminho aberto. E, olha, escrever o roteiro do Bang Bang, ele não é o filme, aliás nenhum roteiro é porra nenhuma do que o filme resulta. Mas o roteiro do Bang Bang começou com uma historinha simples, uma historinha meio policial: uma perseguição, um personagem que a gente não sabia direito quem era, tinha três bandidos que queriam o que ele tinha, era um pouco cômico... Na verdade, a inspiração, veja bem, você me fez lembrar disso agora, era algum conto policial desses bem vagabundos, do tipo que vende em banca de jornal, aquelas coisas assim, que tinha um personagem que era um detetive, mas ele era meio Carlitos, ele era meio... Uma coisa assim... Veio essa lembrança agora, meio sem ligação.

Foi isso que serviu como inspiração, você quer dizer?

É, foi a partir dali que... É isso, me veio em mente agora... O quê que isso amarrou com Bang Bang? Eu não sei, porque Bang Bang não tem nada a ver com isso. Mas olha, escrever o roteiro, porque precisava de um roteiro e etc., foi um processo sofrido. Era uma coisa assim, da folha branca na máquina de escrever, onde escrever uma frase lógica ou uma historinha lógica era uma coisa que eu não queria botar naquela página.

E isso se manteve até o fim, até filmar?... A coisa dos improvisos do Pereio, já tinha idéias escritas?...

Bom, primeiro porque era uma época de muita maconha, muita droga, muita... Era um pouco – muito não significa o excesso, não significa o junkie, significa simplesmente a liberdade e uma tranqüilidade com isso, não se sentia... Apesar da época de repressão.

Não tinha culpa, no caso.

Não, absolutamente. Era uma conquista, era algo que você estava enfrentando porque sabia também da dificuldade, mas sem sentir a repressão. Porque era muito jovem também, 21, 22 anos, nem me lembro; então você não pensa nas conseqüências, na verdade. E o Bang Bang, toda noite, isso eu me lembro bem, o que estava escrito, o que devia ser filmado, sei lá, digamos: Pereio e Jura Otero no bar vão conversar. Tinha uma seqüência escrita, diálogos e tal. Mas aí, na noite anterior, aquilo ali não era satisfatório. A cena era reescrita, totalmente reescrita de noite como base pra no dia seguinte poder chegar para o Pereio, para a Jura ou para as pessoas e simplesmente poder dar para elas, botá-las em uma situação e dar para elas, vamos dizer assim, indicações dos sentimentos que eu gostaria que aquilo expressasse – só. E, de resto, eu devo, de fato, a essas pessoas... o Bang Bang não é um filme feito só por Andrea. É costurado por mim, etcetera e tal, mas ali tem uma criatividade que essas pessoas botaram. Eu acho que elas puseram ali um pouco da vida delas. Eu tive a oportunidade, por exemplo, o conflito afetivo entre Pereio e Jura era um conflito real; eu simplesmente aproveitei que eles não estavam bem, digamos assim, discutindo, brigavam e etc., para colocar aquela impossibilidade de se lidar, mas com o desejo de continuar se relacionando. Eu estava lembrando agora: eu estive em Belo Horizonte há umas duas semanas ou três semanas quando teve uma Mostra de Cinema Marginal, um Seminário, e revi o Ezequias Marques, que é o velho baixinho que faz o ceguinho. Eu não sabia...

O bandido cego que fica atirando.

É, o bandido cego. Na época, era um ator mineiro, mais jovem, me indicaram ele, eu filmei, mas eu nunca me aproximei humanamente, digamos assim, a ponto de conhecer a vida dele, de ter muito tempo para conversar no dia-a-dia. Porque aquele filme foi feito em onze dias, se você pensar foi uma pauleira. E, agora, que ele está velhinho, eu estive lá, me convidou à casa dele e me contou que quando ele era menino, aos onze anos, uma coisa assim, ele fugiu de casa para acompanhar um circo.

História clássica, né? (risos)

Porra! Isso me deixou muito feliz porque eu entendi de onde que surgia o personagem que ele consegue fazer. Ele é um Carlitos, ele é um circense, ele tem toda essa história assim. Se essas pessoas não tivessem essa carga emocional, essa carga de busca e de ansiedade de vida, o filme não seria o que é. Todo mundo ali era assim, os atores, digamos. A Jura foi uma cigana, filha de ciganos, raptada quando criança na vida real, que não sabe quem eram os pais, aonde viveu, em suma, era reichiana já naquela época. Pereio, o doido que sempre era, que todo mundo conhece e admira...

Acho que ele nunca tinha interpretado ele mesmo.

Era o doido sadio, o louco sadio mesmo.

Mas o filme cria a persona Pereio, não me lembro antes de um filme em que ele usasse a persona dele, a presença Pereio: aquela coisa de "o Pereio chegou".

Engraçado, você falou uma coisa, acho que esse filme de fato marca ele também porque a partir daí ele dificilmente consegue separar o Pereio dos papéis que ele faz. Ele faz sempre o Pereio.

E antes não, tinha feito Os Fuzis...

Antes ele se forçava a um outro papel.

Nesse filme é muito marcante isso, a coisa se mistura.

Tinha o Milton Gontijo, que é uma pessoa também sofrida, teve paralisia quando era criança, teve um puta acidente, viu um amigo morrer tomando um tiro. Ele faz o papel de bêbado, no bar – esse ficou meu amigo até a morte.

Ele é dublado pelo Pereio, né?

É. O Pereio é que faz as duas vozes.

É uma espontaneidade que na verdade é encenada, porque é filmada e depois é dublada, é refeita.

E aquilo tudo, por exemplo, o telefone, ele surge quando o plano está sendo rodado. O diálogo surge na improvisação, ele não existia no texto escrito. A essa ponto a gente estava solto, a ponto de incorporar na hora, já filmando, a câmera rodando, não é um pouco antes, não, estava tocando: "Ih, olha, o telefone!" (rindo). E o cara ia atender e eu disse: "Não, deixa tocar!".

É curioso que daí em diante a sua produção ia se voltar para os documentários...

Olha, uma das minhas preocupações, um esforço que eu fiz, era a tentativa de esvaziar. Na medida em que eu estava escrevendo a história do Bang-Bang, a idéia era extrair, não deixar que aquele signo, ou aquela frase ou aquele personagem fossem óbvios. Toda vez que algo ficava óbvio, algum sentido ficava muito claro, então não, então eu tirava fora. A questão era: "Como que esse símbolo, essa imagem, pode ser mais ambíguo possível, mais múltiplo possível na cabeça de quem assiste?". Esse era o objetivo do filme, isso era consciente, deixar as possibilidades de significados abertas à interpretação. Tanto que o filme, na estrutura em que foi escrito, não tinha necessariamente essa ordem que tem do modo que é exibido – inicialmente eram rolos separados, que poderiam ser exibidos independente da ordem do rolo. Cada conjunto era um conjunto, entendeu? Eram seqüências que podiam passar na ordem que fosse. Eu fiz a experiência, não de todas as possibilidades porque isso seria inviável, mas fiz isso na moviola – eu trocava os rolos, passava assim e assado, e a história persistia, o que eu queria estava lá...

E chegou a fazer isso em sessões públicas?

Uma vez, no Belas Artes, aí eu tive problemas, o projecionista reclamou: "Mas tem que ter uma ordem". Porque o cara não pode pegar um rolo qualquer e botar, então eu fiz em rolos duplos, e tentei que tivesse a alternativa de variar entre os quatro rolos duplos, mas aí numeraram e mantiveram uma ordem.

O Glauber Rocha quis fazer o mesmo no A Idade da Terra.

É, eu li isso depois, o Ricardo Miranda me contou essa história, de que tinha essa intenção também de poder ser projetado sem ordem de rolos...

Sobre os seus documentários, o Fernão Ramos já escreveu um texto fazendo uma aproximação com o Cinema Direto norte-americano...

Bem, mas isso são os outros que interpretam... Na verdade, eu nem leio muito o que escrevem sobre o que eu fiz, porque senão eu acho que me atrapalham, porque já faz uma certa lógica, e eu tento escapar um pouco dessa lógica consecutiva, de A+B=C, de 1+1=2. Não, 1+1 é igual a quinze, a sete, eu não sei! Depende de quem é um e quem é o outro um. Eu vou descobrindo, o caminho vai se abrindo, a coisa vai se revelando. Por exemplo, no Bang Bang, o plano em que o jipe corre, eu não fiz o percurso da estrada inteiro antes de filmar, mas sabia que tinha uma montanha lá no fundo que dava um rumo, um sentido. O que eu queria era que houvesse uma aceleração nesse sentido, então o que eu fiz foi pegar a música do Hatari!, aquele filme do Howard Hawks, e botei um cassete ao lado do Pereio no jipe, e disse: "Pereio, vai ouvindo a batida e vai pisando fundo e vai acelerando conforme a batida da música, e manda ver!"... (risos)

A câmera então seguia tão incerta quanto o personagem?

Bem, eu ia acompanhando... Eu sabia quando o rolo estava chegando no fim e queria enquadrar meio de lado, pra poder dar o corte. E quase não deu, porque o Pereio acelerou mesmo. E eu estava no outro carro com o Thiaguinho na câmera, o Thiago Veloso...

E o jipe é um carro que escapa ao controle.

É, o jipe escapa, ele tem que acelerar. Eu estava numa C-14, e a gente tinha botado um pranchão na frente dela pendurado com dois cabinhos de aço, mas a prancha estava a essa altura do chão (sinaliza uma altura baixa), e aquilo é chão de terra. Isso hoje eu chamo de irresponsabilidade, de alguma maneira. E o Thiaguinho sentado, com um tripé ali no pranchão, com uma proteção pra não levar pedra, e a gente deu sorte porque nenhuma pedra bateu na lente... E eu dirigindo a C-14 e olhando pro Thiago, e a minha preocupação inicial seria seguir o carro do Pereio, mas naquele momento a minha preocupação de fato era: "Caralho, se esse negócio der uma bicadinha no chão, nós todos vamos, ele antes e depois...".

Voava todo mundo!... (risos)

Então... A gente teve sorte, o que eu posso dizer? Não aconteceu nada com o Thiago, e quando a música abre... Mas você estava perguntando dos meus documentários. Olha, é uma coisa pessoal. Naquela época, meu pai faleceu, e a gente fica querendo afirmar alguma coisa, provar que é capaz de ganhar a vida. Tinha naquela época aquela coisa de categoria especial para os filmes, de curta-metragem e documentário, e eu fiz uns quatro com outras pessoas. A idéia era fazer e vender o filme, levantar dinheiro e continuar trabalhando. O filme com a Ruth, Jouez Encore Paiez Encore, que foi finalizado apenas em 1995, foi montado em 1975.

Como foi a produção dele?

Ele foi feito em vídeo com a primeira camerazinha da Sony, fita de rolo, meia polegada. A Ruth pagou o transfer para 16mm e montei na moviola. Me mudei de São Paulo para o Rio para fugir dela na montagem. Não queria a presença dela, não era sobre ela que eu estava fazendo o filme. Essa era a condição, não ser sobre ela. Documentei o grupo, as relações, não era sobre a peça com ela. E tive problemas. Quem salvou esse filme foi o Paulo Emilio. Ele exibia filmes brasileiros nas aulas, um dia ele foi exibir o meu filme e a Ruth mandou a polícia, porque ela não queria a exibição. A sorte ou azar é que tinha uma cópia de um filme do André Luiz Oliveira, e levaram o filme dele em vez do meu. Paulo Emilio sumiu com a cópia, escondeu na casa dele e ficamos sem saber do paradeiro da cópia. Uma dia eu recebo um telefonema, era 1980 e pouco, e a Lygia Fagundes Telles me liga, dizendo que encontrou um pacote com um bilhete do Paulo Emilio para mim. O Paulo Emilio salvou o filme...

Mas era a versão mais longa?

Era, existe a versão integral, que foi remontada. Tive de concordar com ela em tirar duas cenas para poder ter acesso ao negativo, que ela seqüestrou. A fita de vídeo também desapareceu. Bem, eram cenas inconvenientes para ela e eu retirei, mas fiquei com os negativos, que não mando nem para a Cinemateca. Mas eu tenho de dizer que, antes de ver, ela não interferiu. Queria ver, antes de pronto, mas não viu. Acho que o documentário permite eu me inserir na situação. Você pode estudar, mas, quando está filmando, você não sabe o que acontecerá – é um primeiro e último encontro com o entrevistado. Com o Conversas no Maranhão é a mesma coisa. Eu nunca tinha ido, não sabia a língua dos índios e ficamos um mês sem fazer nada. Estudei um pouco, mas não teve nada a ver com o filme. Tivemos um mês de relacionamento, fui adotado por uma família, morei com eles, a gente saía para caçar, depois sentávamos à noite para fumar um baseado e olhar as estrelas... Porque eles são altos astrônomos, não sei se vocês sabem. Eu aprendi a observar os satélites porque eles me ensinaram, eles sabem quando um corpo estranho aparece no céu. Vivem cantando e dançando... Depois de um mês, sem nunca terem sido filmados ou visto TV, expliquei o que tinha ido fazer. Eles não têm uma palavra para imagem, então, tive de explicar como a câmera captura a imagem, prende ela lá dentro e depois exibe em outro lugar. Eles entenderam no ato e começaram a fazer reivindicações.

Você comandou a câmera ou deixou na mão deles?

Levei uma outra câmera, de Super-8, e deixei nas mãos deles. Só instruía a enquadrar e trocar o cartucho. Depois desse trabalho, montei um projeto chamado Visão dos Vencidos. Consegui uma bolsa americana, que me deu credibilidade diante das universidades e instituições. Eu era alguém, muito jovem, mas com boa bolsa. E vi muitas coisas dos índios americanos, ou seja, os índios manuseiam a câmera há muito tempo. A diferença é que os índios, hoje, fazem filmes como a gente. Conversas no Maranhão era para nós, brancos, mas teve importância para os índios, porque quando a geração seguinte viu o filme aconteceu algo importante. Os jovens não conheciam como os velhos narradores contavam as histórias, apenas conheciam as versões de seus pais, e quando viram que essas versões eram diferentes começaram a entrar em atrito com os pais. Eles estavam diante de uma prova incontestável. Minha idéia é sempre provocar algo e interferir na realidade.

Como era a relação com eles na filmagem?

Eu perguntava para eles o que eles queriam que outros vissem, e eles selecionaram o que era importante. Então me levaram para alguns lugares que eles queriam mostrar. Não me lembro de terem proibido de filmar nada. Aí, com a bolsa americana, eu viajei e conheci reservas americanas, índios na América Central e na América do Sul, inclusive no Brasil, onde entra guarani e tupiniquim. Tudo isso foi feito em vídeo e a idéia era interativa, uma comunidade vendo o vídeo da outra. Isso em 1978 e 1979. No Espírito Santo, gravei um velho guarani e depois mostrei esse material para os guaranis do litoral de Cananéia. O velho de lá fez um ritual, cantando uma música por meia hora, mas, quando os índios de Cananéia viram, ficaram putos, não comigo, mas com o velho do Espírito Santo, porque ele não poderia ter feito aquele ritual para mim, um branco, jamais poderia ter participado daquele recado particular entre eles, uma coisa privada. Eu não entendia o que ele dizia e cantava. Mas ficaram temerosos de que eu podia revelar algum segredos deles... Bem, aí foi isso. Gravei nos EUA, mostrei material deles aqui no Brasil, levei fitas dos brasileiros para os índios americanos e fiz um percurso que vai da aldeia à escala da representação oficial. Tem, por exemplo, depoimentos de índios americanos que já... não são brancos, porque o cara é índio, não tem jeito, mas o cara tinha ONG, com escritório perto da ONU. Eram políticos ativistas mesmo, tanto que era na cidade de Minneapolis, no meio da cidade... Imagina uma reserva indígena no centro da cidade. Eles tomaram um quarteirão, invadiram e tomaram um quarteirão... Eram prédios assim, tomados. Depois isso resultou na fuga daquele sujeito, Letellier, ele foi lá para o Canadá, e os americanos seqüestraram o cara lá. Esses índios me levaram para gravar o recado de um fulano, mas o fulano é clandestino, procurado pelo FBI, então, eu tive de ficar rodando com eles por três dias. Eles me botaram em situações delicadas, do tipo entrar em um bar de brancos com eles, e eles todos armados, porque eles se defendem. Mas como eu reajo? Como me comporto diante dos brancos? Acabei indo, gravei o depoimento. O cara estava escondido em um prédio todo detonado, num refúgio mesmo, como é na Palestina hoje. E esse material rodou, foi visto em comunidades diferentes. Fui também ao México, naqueles grupos meio revolucionários, com caras falando contigo com espingarda na mão. Aí eu fiquei conhecendo o caminho do dinheiro das ONGs. E vi a grande traição feita a esses povos indígenas. Para te dar uma idéia, existe uma fundação chamada InterAmerica Foundation, ligada ao governo americano. Como fui atrás dessa história? Eu estava no Peru e descobri um projeto ligado a Unesco. Tinham colocado 10 Toyotas com equipamentos de vídeo para que as comunidades indígenas fizessem os seus programas, com essa idéia de intercâmbio e comunicação, de entregar nossas armas ao outro, mas isso é cascata, porque o vídeo é mais um instrumento de dominação. É igual o computador. Ele te dá uma estrutura mental para você trabalhar, ele te impõe uma estrutura, não é a sua. Você não diz para o computador fazer o que você quer. Você faz o que computador te permite fazer na forma em que ele faz. Mas onde eu estava?

Você falava de quando conheceu a InterAmerica Foundation...

Ah, então fui atrás dessa história, querendo saber que projeto aquele, ainda muito ingênuo em relação a tudo aquilo. A finalidade desses vídeos que eram distribuídos para os índios era começar a mostrar como uma comunidade plantava, era uma comunicação para se formar uma unidade, uma coesão daquelas comunidades, uma ideologia de formação de um povo, de auxílio. Uma série de vídeos era sobre a produção da fibra do algodão, plantio de fibras para tecidos. A Levi’s estava por trás da Interamerica Foundation. E a Levi’s era importadora do Peru, de fibras para suas fábricas. As fibras vinham com qualidade diferentes, então tinham de gastar uma grana alta para dar uniformidade à qualidade do produto. Eles precisavam que o Peru vendesse um produto mais uniforme. Então eles faziam esses vídeos "culturais" como uma forma de se comunicarem, e aí passaram a interferir na produção, e todos os índios passaram a fazer da mesma maneira. Havia interesse financeiro em uniformizar tudo, e isso quebrou as diferenças e especificidades de cada cultura e juntou todos no sistema comercial. Meu relatório da bolsa foi sobre isso. Esse material só foi visto por índios. Depois disso, fui me dedicar a grupos não-contactados. Fui conhecer os Arara.

E fez vídeos com eles...

É, mas pra isso tive três anos de vivência no Pará. Uma vez fiquei oito meses seguidos na floresta. Aí a gente muda. Você muda metabolicamente e muda as ordens dos seus sentidos. Aqui, agora, a vista está em primeiro lugar. Mas se você está em uma mata fechada o ouvido passa a substituir a vista. É ele que te dá a sensação de profundidade, que te diz o que tem atrás dessa folhagem que está a poucos metros de você. Você deixa de ter linha reta, formas lisas, não tem mais, a superfície é multifacetada. Você não vê o horizonte. E isso provoca coisas, viu? Isso altera de fato sua percepção. A acuidade auditiva que se desenvolve... O homem é uma coisa maluca. A gente na verdade poderia desenvolver tanto, de fato, o ser humano. A gente acha que desenvolvimento de ser humano é implantar um chip qualquer em uma pessoa, para que seja homem biônico, mas o desenvolvimento dos seus sentidos... Eu aprendi e te digo: se você se condiciona diferentemente, você vai perceber mais coisas. Por exemplo, eu voltei depois desses oito meses na mata... Eu tive um acidente, cortei minha mão... E quando cheguei em São Paulo uma das coisas que me surpreendeu foi que tudo o que eu olhava tinha tantos detalhes... O som... Eu tenho um Fusca e, quando eu voltei pela primeira vez para meu Fusca, e olha que eu estudei mecânica, fiz engenharia, mas os ruídos que eu escutava... Eu ouvia um monte de coisas que nunca tinha ouvido. Depois você perde. Quinze dias depois você não ouve mais nada. Perde totalmente. Onde foi parar tudo aquilo? Foi o que eu percebi. A gente é o que a gente resolver ser. Mas foi um aprendizado. Agora, essa fantasia que eu tinha do olhar do outro, como se o olhar do outro pudesse me revelar alguma coisa... Negativo, não é através de tecnologia. Através de tecnologia, o cara só vai macaquear o que a gente faz. Não são culturas que criaram tecnologia, nem de reprodução de imagem, nem de memória. As civilizações que cultivam a morte, digamos, você tem memórias delas porque elas constroem em pedra. Eles constroem em folhas. Seis meses mais tarde não tem mais nada. O passado é o recontar do presente, sempre a mesma coisa.

Você fez uma série de documentários com músicos.

Gravei coisas com músicos. Mas só um foi finalizado. Confesso para vocês: sou uma pessoa frustrada em relação à quantidade de material. Eu gravava muito, filmava muito, mas terminar é complicado. Falta dinheiro, as coisas vão sendo guardadas. A quantidade de material que eu perdi nessas viagens que fiz, olha... Eu tenho as fitas, mas as máquinas não existem mais, não tem como assistir, e o suporte está grudento, quer dizer, acabou... Com toda nossa fantasia de memória, de criar sistemas, hoje nós estamos anulando a memória. O sistema digital são apenas números, não tem nem mais como ver o que é. E basta uma panezinha qualquer que está perdido. O que me adianta ter um banco de dados digitais se eu não sei o que é aquilo? A história do homem é ainda essa aqui, a da conversa. A tradição oral ainda é a grande força da identidade do homem. Cultura é isso, essa coisa viva, não um passado registrado, que você nem sabe o que é.

Você fez ainda um filme sobre a Biblioteca Municipal de São Paulo e outro sobre o Teatro Municipal.

O do teatro é lindo, eu adoro, é um musical. Tem duas versões. Uma de meia hora que fui obrigado a fazer, por conta de uma exigência do Minc, e outra de uma hora. Mostrei essa para o Minc, eles ficaram putos, mas o Weffort gostou da versão de uma hora. As cinco mil cópias que foram feitas foram todas usadas para o Ministério das Relações Exteriores. Nenhuma foi distribuída na finalidade que tinha, que era para as Bibliotecas do Professor, no país inteiro. Me contaram, não posso afirmar, mas é o que soube.

Você já trabalha há bastante tempo no projeto de Serras da Desordem, não?

Dez anos. É uma ficção baseada na realidade. Essa busca de tentar extrair a ficção da realidade é algo que sempre tentei dentro do documentário – tudo depende de como você olha. Então tentei narrar a história de um índio com os próprios índios, onde em certas situações eu filmo o cotidiano deles e em outras eu represento com eles situações que já aconteceram. Viajei mesmo. Fui ao Maranhão, Bahia, Brasília. Fui encontrar as pessoas que esse índio encontrou durante os dez anos de peregrinação. E todos toparam, então refiz com o índio a viagem que ele fez nos anos 70, quando a família foi toda massacrada, ele escapou e, durante dez anos, ele veio descendo para o Planalto Central, mas é apanhado na Bahia, em 1988, e ninguém sabia quem era, ninguém entendia a língua dele. Chamaram intérpretes de línguas próximas, e o acaso faz o seguinte: o índio que chamam como intérprete está de porre e não pode vir. Aí o cara do posto manda outro, de 18 anos, que falava mais ou menos o português, mas dominava bem o tupi. Foi ele, no lugar do outro. Quando ele chegou em Brasília, ele ficou travado porque o índio perdido é o pai dele. Eles se reencontram. Os dois ficam sabendo que nenhum deles foi morto no massacre. O pai depois não quis ficar na aldeia do filho, porque muitos falam português, pela proximidade com os brancos, então ficou em uma aldeia de um grupo mais nômade. Essa é uma história que me tocou, me pegou por esse lado do reencontro, da perda e, diante do não saber, o reencontro – é uma família despedaçada que se reencontra. Achei isso positivo como elemento narrativo. Foi uma época difícil, porque eu tinha me separado, estava vivendo longe de um filho pequeno, então era um sentimento que eu estava sentindo e essa história é muito reveladora de nossas esperanças. No meio da filmagem, o índio foi atropelado e quase morreu! Cara, eu fiquei péssimo. O cara sobreviveu a tudo e eu, com minha intenção branquinha, ao refazer o trajeto dele, ele quase morre... Fiquei mal com essa atitude de interferência. Porque pode ter conseqüências que você não espera, né?...

Filmou muito?

Filmei 140 horas de material. Oito horas em 35mm e o restante em Mini-dv. É passado e presente, preto e branco e a cores, mas não é exatamente isso. O preto e branco expressa a interioridade do índio. Nunca pensei em interferir na imagem, mexer nela, mas vou fazer algumas alterações com a tecnologia digital.

Novos projetos?

Projetos eu tenho sim, mas estou tão envolvido com esse e está tão arrastado para conseguir sair dele, estou com todos os contratos vencidos, com dívidas. Ainda não me cobraram porque sabem que é complicado... Mas eu tive que justificar os atrasos. Por exemplo, o contrato do Ministério vale por um ano, só que o dinheiro chegou sete meses depois, então é um contrato que não tenho como cumprir. Mas eles sabem disso e estão sendo corretos. Não sei agora para onde vai agora, mas estou vendo ai um cinema meio franchising. Não sei se vale a pena entrar nessas leis. Prefiro produzir de uma maneira mais simples e pessoal, com amigos. Eu sou autônomo – não tenho laboratório, mas faço o resto em casa, do roteiro à mixagem. Olha, o contrato com a Petrobrás não é patrocínio, mas de publicidade. Eles me dão um tanto de dinheiro para aparecer o nome deles por tantos segundos em tal lugar no filme.

E é a primeira coisa a aparecer nos filmes...

Como se eles fossem produtores. E como se dinheiro fosse deles e não de isenção de impostos. É como a televisão, que é concessão pública. Governo é isso, de esquerda ou direita, ele é mantenedor. Espero que a garotada nova tenha raiva do que esteja acontecendo no mundo, porque essa raiva é que vai gerar a possibilidade de um pessoal independente, marginalizado, que gere um cinema que questione tudo o que está acontecendo, para exigir uma reflexão, e não essa pasmaceira mercadológica.

Tem gente dizendo aí que filmes de periferia não são vistos, que o que dá público agora é comédia...

Ah, as fórmulas, as estratégias, pelo amor de Deus, cara, tira isso da frente... O franchise é a solução do esperto. Não tenho interesse nesse cinema feito no Brasil. Só tenho ido ver filmes de amigos. E quando estou para filmar, aí é que eu não vejo filmes mesmo. As imagens interferem demais em nossa cabeça. Prefiro buscar minhas próprias imagens, preciso de um esvaziamento desse consumismo cultural..


Entrevista realizada em 2005 por Daniel Caetano, Francis Vogner, Francisco Guarnieri e Guilherme Martins. Transcrição de Bianca Novaes e Cléber Eduardo.